Ainda estamos aqui, falando de ética nas relações com a imprensa

O que consultorias e treinamentos oferecidos por jornalistas que atuam em grandes veículos têm a ver com a democracia? Recorro ao bordão do histórico apresentador Goulart de Andrade, ao convidar o telespectador a acompanhar suas reportagens de TV nos anos 80: “Vem comigo”.

Que a liberdade de imprensa é um pilar sagrado da democracia, todos sabem – ou deveriam saber. Como bem lembra Yuval Noah Harari em seu livro Nexus, a democracia não é a tirania da maioria, mas um regime em que as minorias têm seus direitos básicos respeitados. E somente com mecanismos de controle público, como imprensa, Judiciário e Legislativo independentes, é possível conter a tentação de governantes populistas de silenciar seus críticos e se perpetuar no poder, ainda que eleitos “democraticamente”. Exemplos atuais não faltam, da América Latina ao Leste Europeu, de líderes que tiveram êxito ou fracassaram neste intento.

Em um cenário global de polarização política, atacar a imprensa é uma obsessão diária dos extremistas – de todos os extremos. Desde repetir o mantra de “interesses escusos da mídia” até produzir e impulsionar fake news em escala industrial, o objetivo é o mesmo: ruir a credibilidade do jornalismo. E com a crise generalizada de confiança nas instituições democráticas, somente um “líder com poder absoluto é capaz de enfrentar jornalistas, juízes e parlamentares corruptos para salvar o povo”. Assim reza a cartilha dos ditadores.

Neste contexto, a ética no jornalismo ganha ainda mais relevância, pois para manter as democracias de pé é imprescindível zelar pelo maior ativo da imprensa independente: sua credibilidade.

Agora, pare! (como na música do É o Tchan).

Imagine-se como um torcedor fanático de um time de futebol. Você acaba de descobrir que um conhecido juiz, em atividade, foi contratado pelo clube adversário para dar uma série de treinamentos aos seus atletas sobre as principais regras do esporte. Mesmo que as partes protocolem por escrito que o evento terá apenas o nobre objetivo de ensinar os jogadores a serem mais disciplinados em campo, você vai acreditar? Por mais que o árbitro siga se esforçando para atuar sempre com todo o rigor técnico, esse vínculo sempre levantará suspeitas sobre suas atuações.

Aliás, não é sequer preciso qualquer indício para se suspeitar de um juiz. Os torcedores, dos dois lados, sempre suspeitam, pela natureza apaixonante do esporte. Por essa razão, juízes de futebol devem pautar suas vidas por aquele antigo adágio romano:

“A mulher de César não deve apenas ser honesta, mas parecer honesta”.

Expectativa similar se dá com outros profissionais que têm o dever de zelar pelo interesse público, como jornalistas, parlamentares e magistrados. Com um agravante: a credibilidade destes é fundamental para que o povo confie nas instituições democráticas.

Não se trata de utopia, mas de dever cívico. Para restringir o artigo à nossa área de atuação, vamos analisar supostos casos de jornalistas de grandes veículos que atuam, paralelamente, como empresários, oferecendo serviços de consultorias e treinamentos para empresas e instituições públicas.

Descartemos as suspeitas de que esses serviços são vendidos como “seguros”, para proteger “clientes” de matérias críticas. Nós, jornalistas, sabemos que grandes veículos contam com equipes muito competentes e que as decisões editorais, ainda mais em matérias críticas, não são tomadas unilateralmente, mas somente após apuração dos fatos e versões.

Ainda assim, mesmo que as consultorias e treinamentos oferecidos por jornalistas sejam estritamente técnicos, quem vai acreditar? Não basta pedir para o público avaliar se as matérias continuam críticas. Basta a exposição destes vínculos comerciais para colocar em dúvida a credibilidade do veículo e da própria instituição imprensa.

Pois é exatamente assim que agem os extremistas antidemocráticos. Se já acusam e insinuam sem provas, a fim de desacreditar o jornalismo, imaginem o estrago que podem fazer com a notícia de que determinados jornalistas prestam serviços para empresas e instituições públicas que deveriam ser investigadas por eles?

A nós, assessores de imprensa, cabe seguir a máxima de nossa profissão: as relações entre instituições e jornalistas devem se pautar única e exclusivamente pelo que é notícia. Obviamente, bons relacionamentos entre assessores e jornalistas de redação são recomendáveis, pois é graças a estes que as informações fluem. Porém, estamos cientes de que não pode haver amizade ou qualquer tipo de relação que barre ou alivie uma notícia crítica, se esta é realmente um fato relevante.

Como sabemos também, toda notícia tem vários lados e todos eles têm o direito e o dever de ser ouvidos. Qualquer relação que conceda privilégios é danosa não apenas para a credibilidade do jornalista e do veículo, mas da própria imprensa e da democracia.

Nós, assessores de imprensa, devemos ser os maiores interessados em manter relações estritamente profissionais, com cordialidade, mas com o devido distanciamento, para que nossos colegas de redação tenham total liberdade crítica – e que o façam somente em nome da notícia e não de outros possíveis interesses.

E devemos lutar para ser assim, pois, do contrário, não seriam mais necessários jornalistas nem assessores de imprensa. Bastariam ordens governamentais ou empresariais para que se publicasse somente o que os mais poderosos quisessem. Isso tem nomes: ditadura e censura. Já passamos por isso e esperamos não passar nunca mais. Por isso mesmo, ainda estamos aqui: zelando juntos pela ética nas relações com a imprensa.

André Sales – Jornalista desde 1989, graduado pela Universidade Católica de Santos, especializado em Comunicação Empresarial pela ESPM e pós-graduado em Estratégia e Liderança Política pela FESP-SP. Foi repórter da Folha da Tarde e assessor de imprensa de dois prefeitos de São Paulo (de 1993 a 2000). Em 2001, fundou a Sales, Lima Comunicação, onde já atendeu a empresas como Avon, Grupo Silvio Santos, Peugeot do Brasil, Deloitte, Veloce Logística, Columbia Logística, ID Logistics, entre outras. Foi diretor de Comunicação na JSL S/A, maior operadora logística do Brasil. Também é sócio da Curado Comunicação, consultoria especializada em auditoria de imagem e gestão de comunicação em situações de crise.

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